domingo, 14 de fevereiro de 2010

São José do Egito PE, capital nordestina da poesia popular

Cidade que fala em verso faz cem anos e ganha livro com sua história

DIA DA POESIA

Há cem anos e de repente

São José do Egito (PE), aos 100 anos
São José do Egito (PE), capital dos repentistas

A 400 quilômetros de Recife, bem ali no sertão do Alto Pajeú, fica São José do Egito, conhecida como a capital dos repentistas. Em toda primeira semana de janeiro, na Festa de Reis, acontece o Festival de Cantadores e Poesia Popular. A Casa do Poeta é uma espécie de museu para os violeiros, e residências do centro histórico exibem murais poéticos em homenagem aos talentos locais.
Saudade é um parafuso
Que na rosca quando cai
Só entra se for torcendo
Porque batendo não vai
E enferrujando dentro
Nem distorcendo não sai
Estes versos são de Antônio Pereira (1911- ), chará do repentista pioneiro. Desde Antônio Marinho do Nascimento (1887-1940), a Águia do Sertão, muitos nomes despontaram, em diferentes épocas.
A história de São José é de repente, mas não de sopetão. Aconteceu aos poucos - a cidade completou um século no último dia 9. Para a festa, o jornalista Marcos Cirano, egipciense de raiz, escreveu São José do Egito - um século de história. Principais fontes: depoimentos dos moradores e anotações da paróquia, no Livro de Tombo. Criou, assim, o primeiro documento histórico do município: “Se no Brasil em geral já não se cuida muito da memória, no interior do Nordeste é ainda mais difícil”. O lançamento é da Formato 8, com patrocínio da Companhia Editora de Pernambuco. Mas não adianta procurar. Os exemplares que não foram vendidos no lançamento ou distribuídos a bibliotecas podem ser encontrados, a 20 reais, apenas na banca da cidade.
As imagens aqui, gentilmente cedidas pelo jornalista, fazem parte da obra. Moradores cederam as antigas e ele se encarregou das atuais.
Marcos Cirano mantém um endereço virtual, o Pernambuco de A-Z.





Rua principal, 1942
Cidade de cem anos

Tudo começou com um aglomerado de fazendas. Daí uma capela pra São José foi o pontapé inicial da cidade, oficializada em 1909. No começo houve disputas com a vizinhança da vila, porque na região Rua principal, 2005tinha mais de uma capela dedicada a São José. A de Queimados acabou prevalecendo. O nome mudou para São José dos Queimados, depois São José do Imbuzeiro e, por último, São José do Egito - menção bíblica ao caminho da Sagrada Família, guiada pelo patriarca José até o país das pirâmides.
Hoje são 30 mil habitantes. Tem menino que começa na viola aos sete anos e, quando as pessoas encontram um compadre na rua, é normal cumprimentarem: “Olá, poeta”.
Foi numa casa ali que o paraibano Assis Chateaubriand aprendeu a ler, com jornais velhos. Ainda existem as ruínas do local. E na fazenda São Pedro está o túmulo de João Dantas, o assassino do presidente João Pessoa.



Cidade de repente
Otacílio e Lourival Batista, em cantoria provavelmente nos anos  1950
Otacílio e Lourival Batista, em cantoria provavelmente nos anos 1950

Repentistas têm voz dura e seca (como o clima de São José, com dois meses chuvosos por ano). Câmara Cascudo via nos improvisos uma “exibição assombrosa de imaginação, brilho e singularidade na cultura tradicional”. Segundo Cirano, quem vai estudar a poesia popular percebe: a cada dez cantadores representativos do Nordeste, sete são seus conterrâneos.
Zé Catota (José Lopes Neto, 1917- ) é o Improviso. Louro do Pajeú (Lourival Batista Patriota, 1915-1933), o “rei do trocadilho”. Satírico e rápido, era temido pelos competidores. Um deles terminou o canto assim: “Sou igualmente ao dragão/Do Rio Negro falado”. Ao que teve de ouvir: “Pra ser dragão tás errado/Mas Lourivá já te explica/Tira letra, apaga letra/Tira letra e metrifica/Tira o ‘d’, apaga o ‘r’/Bota o ‘c’ e vê como fica”.
Análises acadêmicas falam da obra de Lourival Batista (1915/1992) e alguns violeiros, além dos folhetos de cordel, publicaram livros. Canção (João Batista de Siqueira, 1912/1982), é autor de Meu Lugar (Nunes, 1978).
O pioneiro Antonio Marinho não registrava seus versos. Ficaram na memória do povo. Cirano conta que ele também era ligeiro nas respostas. Uma vez, de volta a São José depois de viajar, um amigo pergunta na cantoria como fora a andança. Antônio responde: “Eu só fui a Espinharas/ Porque a precisão obriga/ Mas fui com muita saudade/ Daquela nossa cantiga /Minha saudade era tanta…” Neste instante, Marinho foi obrigado a parar para tossir. Depois concluiu: “…Que a tosse não quer que eu diga.”
Foi ele quem despertou o interesse do garoto Ariano Suassuna, aos oito, nove anos, para a cultura popular. O grande dramaturgo contou ao Almanaque: “Vi um dos maiores cantadores que já existiram no Nordeste, Antonio Marinho. À certa altura, Marinho parou o improviso e cantou um folheto que sabia decorado. Lembro que me impressionei profundamente com o folheto. Além do mais, ele tinha dons de ator. Tocava a viola, cantava o folheto e com a cara representava a ação”.
Natália Pesciotta